Hoje trago um texto incrível sobre feminismos com uma abordagem que a filosofa Marcia Tibura chama de Feminismo Dialógico, que é a ideia e prática da busca por igualdade de gênero e da luta pelos direitos das mulheres de maneira não universalizante e respeitando as diversas singularidades que nascem no seio e na ânsia de cada grupo de mulheres das mais diversas comunidades, identidades e realidades. A criatividade que surge dos feminismos dialógicos e descoloniais, hoje, pode ser entendida como componentes de um eixo epistemológico do século XXI para busca do bem viver e de uma sociedade melhor através da valorização do cuidar das pessoas e da natureza.
Então, convido todes para lerem o texto maravilhoso que segue abaixo e que aborda com muita qualidade importantes variações e intersecções do pensamento e prática feminista. Escrito pela minha amiga Catharina Apolinário, somos parceiros de direção do projeto cultural ‘Mães do fogo’, onde estamos desenvolvendo um roteiro de documentário sobre mulheres de comunidades tradicionais do litoral paulista, organizado pela Produção Preta e financiado pelo Governo do Estado de São Paulo via edital do ProAc Expresso. Segue:
Há miliano que cês tão queimando sutiã!
Por Catharina Apolinário
‘De dentro do ap’ é uma música da cantora e multi-instrumentista Bia Ferreira (2018). Nasce a partir do ponto de vista de grande parcela das mulheres negras e latinas em relação ao feminismo europeu. Não porque este mereça demérito, mas porque não observa as lutas de todas as mulheres, as demandas urgentes em contextos de desigualdades sociais e raciais. No caso de Bia, a canção traz ainda a questão LGBTQ+, retratando sua luta contra o preconceito em um país historicamente racista e homofóbico.
Antes de seguir devo dizer que meu lugar de fala é como jornalista e pesquisadora de comunidades tradicionais há mais de 10 anos. Mulher, mestiça, preta de pele clara, descendente de indígenas, negros e brancos, caiçara e heteronormativa (por hora).
Desde o início deste ano dirijo uma pesquisa para o roteiro de documentário longa metragem Mães do Fogo, projeto contemplado pelo ProaC Express 2019. Com uma equipe fantástica de mulheres, buscamos histórias de outras mulheres, narrativas que partem das comunidades tradicionais, povos originários e comunidades de terreiro. Neste percurso pandêmico de entrevistas virtuais encontramos algumas correntes do feminismo que surgem a partir de recortes raciais, geográficos e das demandas urgentes de cada povo.
Ora, o feminismo eurocentrado não se bastou nestes tempos onde a identidade está colocada como condição de bem-estar e de autoconhecimento. Quando as mulheres se reconhecem como força de trabalho e de pensamento político. E se o patriarcado se reinventa, também o feminismo o faz.
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, explica o patriarcado de forma simples: “de uma forma literal, os homens governam o mundo”. Há mil anos talvez isso fizesse algum sentido. Sob a vista do Feminismo Comunitário, o patriarcado é o “sistema de todas as opressões, discriminações e violências, que oprime a humanidade e a natureza, construído historicamente sobre os corpos das mulheres” (Julieta Paredes).
E na definição da jurista Alda Facio, cofundadora do Comitê de Mulheres para a Justiça de Gênero do Tribunal Penal Internacional, é “um sistema que justifica a dominação com base em uma suposta inferioridade biológica das mulheres. ” Acrescento, com base em vivências e estudos: o patriarcado parte ainda do pressuposto da inferioridade financeira, emocional, psicológica e espiritual.
Nesta linha, é importante frisar que o feminismo sob a ótica universalista não insere mulheres que tiveram acessos a conhecimentos comunitários, indígenas, afro-latinos, pautados em práticas e saberes tradicionais; fazendo então brotar a ideia do Feminismo Descolonial. Isto é apontado por Maria Lugones, escritora e ativista feminista argentina radicada nos Estados Unidos, quando afirma que ‘imposição colonial do gênero atravessa questões sobre ecologia, economia, governo, relaciona-se ao mundo espiritual e ao conhecimento, bem como cruza práticas cotidianas que tanto nos habituam a cuidar do mundo ou a destruí-lo. ”
A teoria vai ganhando rosto e corpo à medida que adentramos estes universos comunitários em nossas pesquisas. Ao chegarmos nos Quilombos do Vale do Ribeira e Ubatuba, recordamos o nascimento do movimento Feminista Negro na década de 70. Enquanto na Europa mulheres brancas buscavam equiparar direitos civis com os homens brancos, mulheres negras lutavam contra a subordinação imposta pelo peso da escravização, perante os homens e às outras mulheres, brancas. Recorro à Angela Davis: “aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho escravo”.
Os relatos de uma das fundadoras da Associação dos Remanescentes do Quilombo da Fazenda Picinguaba, Laura Braga, nos trazem histórias de mulheres escravizadas que “recebem” terras daqueles que se diziam seus donos. Ali temos a origem daqueles povoados localizados em um território que até hoje é motivo de disputa judicial – por isso as aspas em recebem, tendo como ameaça o próprio Estado, mas isso é tema para outro artigo.
Em um outro recorte, encontramos a capoeirista e educadora Patrícia de Lima, a Roxinha, de Ubatuba, que nos fala sobre um movimento político que nasce nas rodas de capoeira, o Feminismo Angoleiro. Este, busca uma consciência de gênero em um espaço social marcado historicamente por homens. A mobilização das angoleiras feministas se dá na década de 90, e tomo como exemplo a Rede de Mulheres Angoleiras e a pesquisa da Mestra Janja Araújo, cofundadora do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira Angola e Tradições Educativas Bantu no Brasil, pós doutora em ciências sociais. Ela afirma que o feminismo angoleiro passa pela compreensão dos “esforços das mulheres iniciadas na tradicional capoeira angola em promover o seu entendimento sobre a própria capoeira, para além de um jogo corporal, como um jogo político em que estão colocados aspectos das resistências culturais e da memória dos povos negros, ainda que não mais apenas inserida exclusivamente nos chamados ‘espaços negros’”.
Na Região Metropolitana da Baixada Santista, em Peruíbe, estudando os povos indígenas e caiçaras, encontramos o Feminismo Comunitário, que teve origem na Bolívia, também na década de 90. O tecido Pindorama Brasil deste movimento tem entre suas integrantes a educadora popular caiçara Adriana Lima, parte do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira. Este conceito nasce no seio dos povos originários da América Latina propondo a descolonização do feminismo, bem como o reconhecimento das ferramentas utilizadas pelo patriarcado para sua perpetuação. Mas, para além disso, o Feminismo Comunitário define o capitalismo como a representação deste sistema patriarcal opressor. Para a criadora desta corrente feminista, Julieta Paredes, escritora e multiartista boliviana, o Feminismo Comunitário é um movimento sócio político que entende a necessidade de construir comunidade. E define comunidade como “inclusão que cuida da vida” em um espaço de convivência entre as pessoas.
Caminho para o fim deste texto ressaltando que, apesar destas correntes do feminismo terem surgido na década de 70 e 90, elas são reflexo da luta contra as colonizações do corpo e da mente feminina desde antes de 1500. As relações sociais já existiam muito antes da chegada do colonizador. E, observada cada cultura e cada povo em sua singularidade, é pertinente reforçar que essas relações entre gêneros tinham nuances distintas. “Tais interações, no entanto, partem da intimidade do convívio social, não se restringindo ao relacionamento sexual entre os gêneros, mas às conexões do cotidiano” (Maria Lugano).
Para a maioria das escritoras que estudam o assunto, é comum a certeza de que a colonização dos povos foi fator agravante, potencializando e promovendo opressões de gênero. Que reverberam até hoje em nossas relações interpessoais. Por isso, reforço o coro destas mulheres para apontar a necessidade urgente de descolonizar o nosso pensamento como povo brasileiro e latino americano. E se a descolonização é o processo da nossa emancipação em relação às metrópoles colonizadoras, fico inclinada a citar a cantora e ativista Nina Simone: “Liberdade para mim é não ter medo”. Chimamanda traz uma reflexão que aqui proponho quando afirma que “problema do gênero é que ele descreve como devemos ser em vez de reconhecer quem somos”.
Quem somos?
A escritora santista Djamila Ribeiro lembra que “lugar de fala não é impedir alguém de falar, é dizer que outra voz precisa falar”. Independente da luta ou do gênero, da cor da pele ou da raça, o mais importante é que possamos compreender que existem urgências além das nossas necessidades. E como disse Bia Ferreira, em outras palavras, talvez de forma mais simples de ser entendida, o feminismo que não se atenta para as especificidades de cada grupo de mulheres se omite de forma deliberada. Sororidade precisa ser mais do que um conceito.