
“…[a resiliência] não é necessariamente um estado objetivo que pode ser alcançado, posto em equilíbrio ou mantido, mas antes, precisa ser vista como algo processual. Por conseguinte, pode-se compreender ser resiliente como parte de um processo de tecer seu próprio caminho pelo mundo, e, por isso, como algo pertinente a modos alternativos de viver que são adaptativos e relacionais, e não resistentes aos outros [modos]. ” (Sarah Pink e Kirsten Seale. In: CASTELLS. 2017)
Sei que a palavra resiliência tem sido muito usada por discursos positivistas, em livros e palestras de autoajuda e de coaching. Nem vou procurar sobre isso no google, pois fico com medo de encontrar alguns charlatanismos tipo “resiliência quântica, seja você sua própria resiliência” ou a “resiliência dos high stakes” e me desanimar de continuar escrevendo sobre esse tema de extrema importância. Mas o que eu trago é este termo “resiliência para o futuro” do livro Outra Economia é Possível, organizado por Manuel Castells, sociólogo espanhol e um dos principais intelectuais que trata sobre a sociedade contemporânea conectada. Este livro traz textos de Angelos Varvarousis, Lana Swartz, Sara Pink, Sarah Banet-Weiser, entre outros. É a resiliência da perspectiva não-individualista, sabe aquela ideia de tirar o rei-bebê – aquela criança mimada que existe dentro de cada um de nós – do centro das atenções e perceber o intrincado universo relacional de nossas vidas?
Para ampliar o conceito eu misturo dentro do meu caos psíquico com outras referências que acabei encontrando pelo caminho até aqui, como: o Feminismo Comunitário de Abya Yala, bem definido pela Julieta Paredes do povo Aymara, as Ideias para adiar o fim do mundo de Ailton Krenak, O Bem Viver conceituado pelo equatoriano Alberto Acosta, entre outros saberes que nunca cessam de me estimularem em seguir a busca. E lembrei de outro intelectual e escritor brasileiro, Daniel Mundukuru, com uma frase que li em um de seus livros: “Como é do conhecimento de todos: caminho vai abrindo caminho”. Um mantra para quem quer olhar a vida pelo prisma da criatividade, deslocando o olhar do objetivo do fim para o modo de ser durante o trajeto.
Nesse atual distanciamento físico provocado pela pandemia, participei dos cursos O Poder do Sonho e O Poder do Coração, ambos ministrados por Kaká Werá, e aprendi que nas culturas Tupi e Guarani, assim como outras, a categoria do pensamento é representada pelo elemento ar. A categoria da emoção é representada pelo elemento agua e o encontro dos pensamentos com as emoções, entre o ar e a água, são capazes de formar as correntes de forças da criatividade, para construção de novas possibilidades de mundo e de relacionamentos, enfim, de culturas no plural. E o que conecta as categorias do pensamento (ar) e da emoção (água), com os outros corpos (terra), humanos e não humanos, e com toda a matéria empírica e vivencial da natureza são os nossos sentidos biofísicos, simbolizado pelo elemento terra.
O ato criativo, a criação, para muitas mitologias e cosmologias é representada pelo elemento fogo, é a transformação, a passagem, a destruição, a ressignificação, o renascimento, a ave fênix, é a nossa capacidade transcendental de tecer nossa própria existência, existência essa que precisamos encontrar maneiras mais harmônicas com todas as formas de vida em nossa mãe natureza. Ser criativo é estar em movimento, em transubstanciação e é estar vivo pois tudo que muda permanece. Ser criativo é viver para e pela permanente mudança. Não se trata da esperança de um estado de coisas paradisíaco, de um projeto que se aplique a tudo e a todos, mas de viver a cultura da criatividade e complementariedade entre as infinidades de culturas. Transferindo a arrogância de impor um projeto ao mundo para a humildade de aprender e reaprender com o trajeto.
Diante da fome, das opressões, das finitudes dos recursos naturais e dos desequilíbrios ecológicos é preciso acender a chama da criatividade dentro de cada um para queimar a imediatista e suicida cultura antropocêntrica moderna e permitir novos aprendizados no caminhar para a resiliência do sociobiocentrismo, do Bem Viver, de colocar, ao invés da economia, a pluralidade da vida no centro das tomadas de decisão.
A partir dessas reflexões iniciais eu proponho que, ao pensarmos sobre o futuro, passemos a questão de “qual futuro queremos? ” para “o que queremos querer agora para que exista outros futuros possíveis?”. Parece confuso, trata-se de uma metarreflexão: por que você deseja (necessidades pessoais e singulares) o que deseja (as estratégias e resultados sociais) naquilo que é desejado (objeto ou ideal)? E o que fazer com isso no agora?
Imaginando outros mundos
O livro A Utopia escrito pelo britânico Thomas Morus e lançado no ano de 1516, fala de uma ilha perfeita de se viver, com muitas riquezas e novas formas de organização social e política justas. Não à toa o século XVI se caracterizou fortemente pela navegação partindo do continente europeu em busca de conquistar o Novo Mundo. E conquistaram. Mas ao chegarem mataram ou invisibilizaram as Utopias já existentes por aqui, dominaram as pessoas e os territórios na base do ferro, do fogo e da cruz.
A arte e o pensamento sempre apresentaram e representaram nossas encruzilhadas e soluções civilizatórias através de utopias, de imaginarmos outros mundos possíveis. A sociedade é movida por utopias e ideologias, inclusive o atual discurso ideológico da não-ideologia. Uma pedra não tem ideologia, não faz escolhas e não possui sonhos. Não somos pedras!
Destaco algumas dessas utopias ancestrais que sobreviveram ao processo de colonização de Abya Yala (América Latina), foram: sumak kawsay (kíchwa), suma qamaña (aymara) e nhandereko (guarani) que podem ser compreendidas como Buen Vivir, Bem Viver, que traz uma proposta de vida construída coletivamente em harmonia com a Natureza. É diferente da proposta de bem-estar social das sociedades ocidentais, Bem Viver é uma filosofia de vida que visa um projeto emancipador que supere a ideologia de progresso enquanto acumulação infinita de bens materiais. Sai a “eficiência” e entra a “suficiência” como palavra de ordem.
“Não se trata simplesmente de “fazer melhor” as mesmas coisas que têm sido feitas até agora – e ainda esperar que a situação melhore. Como parte da construção coletiva de um novo pacto de convivência social e ambiental, é necessário construir espaços de liberdade e romper todos os cercos que impedem sua vigência” (ACOSTA, Alberto. 2016)
Essa ideologia implica necessariamente superar as consequências de devastação social e ambiental produzidas no capitalismo desenvolvimentista dos últimos 300 anos e abre as portas para o pós-capitalismo e pós-desenvolvimentismo. Para a maioria dos habitantes do planeta o capitalismo não é um sonho, é um pesadelo.
Importante ressaltar que essa filosofia do Bem Viver não se pretende ser dogmática e um imperativo global, pode ser praticada como uma categoria em permanente transformação de distintas maneiras de ver a vida, de viver, sonhada na guisa do eixo aglutinador da relacionalidade e da complementaridade entre todos os seres vivos. É um debate cada vez mais presente nos países industrializados ocidentais do norte global do sistema-mundo, que são os maiores responsáveis pelo desastre ecológico e social no qual se encontra a humanidade.
Se não sonharmos o futuro neste momento, outras pessoas hão de fazê-lo. Trata-se de intervir agora de um modo orientado para o futuro, um modo que permanece resiliente porque é capaz de evitar futuros indesejados. Devemos buscar opções de vida digna e sustentável que não sejam a reedição ou caricatura do estilo de vida ocidental.
“…reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia.” (KRENAK, Ailton. 2019)
A coletividade criativa e engajada globalmente para transformações locais que busquem viver uma boa vida em uma boa territorialidade é uma proposta que vai muito além de posições dicotômicas de esquerda e de direita, é uma questão de colocar a vida como centro do debate – todas as vidas, humanas e não humanas. Não se trata somente de querer mudar o mundo, mas também de mudar a si próprio, porque o mundo e você são uma coisa só. Trata-se de criar resiliência e não somente resistência.