Por quase dois séculos sua história foi tida como lenda. Hoje é reconhecido como um dos primeiros arquitetos de São Paulo, pelo sindicato da categoria.
Vila de Santos, 1735. O menino negro Joaquim corria descalço pelas barrentas ruas do Valongo, chamado às pressas pelo mestre-pedreiro português Bento de Oliveira Lima, seu senhor. Segundo o que os companheiros de lida lhe disseram, o homem que detinha sua propriedade haveria de lhe dar uma ordem importante. Ao chegar diante dele, tomou conhecimento de que sua vida mudaria radicalmente. Bento ordenou ao menino que separasse todas as suas coisas a fim de partirem no dia seguinte na direção da sede da Capitania Real de São Paulo, situada, como haveria de saber, no longínquo Planalto de Piratininga, distante quatro dias de caminhada de Santos. Depois de muito conversar com a esposa, Antônia Maria Pinta, Bento chegara à conclusão de que não havia como mais ganhar um bom dinheiro na vetusta vila portuária. As obras escasseavam a olhos vistos. As grandes oportunidades estavam, de fato, na capital, onde as Ordens Religiosas se mostravam ávidas por profissionais que pudessem levantar suas igrejas dentro de conceitos mais resistentes e modernos.
Bento até pensou em ir sozinho, deixando Joaquim para atender sua esposa, que ainda ficaria morando um tempo em Santos, até que ele conseguisse se estabelecer a contento na capital. Mas, pensando melhor, considerou levar o pupilo, que vinha se revelando cada vez mais habilidoso na arte de talhar pedras, um dom precioso àqueles tempos em que a arquitetura paulistana se mostrava sem graça e arcaica.
O garoto, batizado na igreja como Joaquim Pinto de Oliveira (uma mescla dos nomes de Bento e Antônia), tinha quatorze anos e absorvera como nenhum outro rapaz da sua idade o ofício de moldar blocos de rocha bruta para a construção de edifícios. Destarte, sem imaginar o que viria a ser seu futuro, ele beijaria sua mãe, Clara Pinta de Araújo, também escrava da família de Bento, pela última vez, e partiria para sempre da cidade natal para viver uma experiência única, que o tornaria uma figura ímpar na vida da São Paulo setecentista.
O mito Thebas
Joaquim cresceu numa cidade que se desenvolvia lentamente em meio a uma paisagem permeada de edificações coloniais, a maior parte construída em taipa. Os clientes potenciais de Bento e seu pupilo, assim, não eram os moradores comuns (comerciantes, funcionários públicos, prestadores de serviço, etc.), mas os grandes políticos (autoridades enviadas pela Metrópole – Lisboa – e militares) e, em especial, os religiosos. Franciscanos, Beneditinos e Carmelitas estavam começando a investir pesado em seus templos, no intuito de atrair os rebanhos de fiéis (importante ressaltar que as ordens religiosas eram muito influentes na vida cotidiana e exerciam praticamente o papel do Estado em vários serviços, como o de batismo, casamentos e enterramentos, o que gerava uma boa renda e garantia força política). Desta forma, ostentar templos vistosos era bastante estratégico na “concorrência” pelo arrebanhamento de potenciais “irmãos” (membros das irmandades religiosas abrigadas dentro das Ordens).
Bento se valeu de seu conhecimento técnico e da habilidade latente do pupilo Joaquim. Assim, foram contratados pelos padres e ganhando fama à medida que suas obras ganhavam a paisagem paulistana. Joaquim, já adulto, ficou tão conhecido por sua capacidade de raciocínio para o trabalho, que ganhou um apelido culto, inusitado a pessoas de origem tão simples: Thebas*. O negro escravo, além de alfabetizado (e sabia ler e escrever bem), possuía mais conhecimentos de técnicas construtivas do que a maioria dos homens cultos da Capitania.
As principais obras de Thebas em São Paulo foram as fachadas da Igreja da Ordem 3ª do Carmo (1777) e da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (1783). Também seria o escravo arquiteto responsável pela construção da torre principal da primeira Catedral da Sé (1750) e do frontispício do Convento de Santa Teresa. A mais destacada de todas, porém, fora o Chafariz da Misericórdia, talhado em pedra e com quatro torneiras, o primeiro chafariz público da história de São Paulo, que contava com sistema hídrico que canalizava as águas do ribeirão Anhangabaú. Ele fora construído e planejado por Thebas quando ele já estava alforriado, em 1793.
Conquistando a própria liberdade
Alguns anos após a morte de Bento Lima, em 1769, aos 59 anos de idade, Joaquim conseguiria obter sua alforria junto a um membro importante da Igreja da Sé, justamente quando ele se dedicava à construção da torre do templo. O seu ex-dono havia deixado muitas dívidas e, para salda-las, a viúva de Lima, Antônia, teve de dispor de seus principais bens, entre eles os escravos, que acabaram sendo adquiridos pelo arcebispo Matheus Lourenço de Carvalho. Entre 1777 e 1778, o religioso, em gratidão ao trabalho de Thebas, o alforriou. Há historiadores que afirmam que Thebas obtivera sua alforria comprando sua própria liberdade e outros que dizem que a liberdade constava em testamento juramentado assinado por Bento Lima.
Reconhecimento nacional
Falecido em 11 de janeiro de 1811, aos 90 anos de idade, foi sepultado na Igreja de São Gonçalo (situado na atual Praça João Mendes, São Paulo). Sua história foi contada por algum tempo até que se tornou uma lenda. Chegou um momento em que, sem comprovação documental e tampouco testemunhas, sua existência passou a ser contestada. Teria mesmo um escravo alcançado tamanha magnitude na maior cidade brasileira?
O mito Tebas virou história popular. No final do século 19, o cronista José Jacinto Ribeiro levantou a história e tentou desnudar o “homem que tudo faz”. Em 1939, uma peça de teatro reaviva a lenda paulistana. Em 1974, a Escola de Samba Paulistano da Glória desenvolve um enredo sobre a história da Sé e reavive o mito Thebas. Mas foi no novo milênio que o escravo santista, de fato, ganha vida e notoriedade.
O menino Joaquim Pinto de Oliveira, o homem Thebas, ganhou espaço em revistas, jornais, estudos acadêmicos e até um livro (Tebas, um negro arquiteto na São Paulo escravocrata, do jornalista Abílio Ferreira, lançado em 2019). Em 2004, a 1ª Conferência Municipal de Cultura de São Paulo aprovava a criação da Semana Tebas de Ciências, Tecnologia e Educação. Em 2018, ele era registrado, de forma póstuma, pelo Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo (Sasp), como arquiteto profissional, um dos pioneiros da capital paulista. Até o famoso site de busca “Google”, reservou uma homenagem ao escravo arquiteto urbanista, em 30 de junho de 2020. A luz de seu reconhecimento, enfim, traz aos santistas o orgulho de mais um filho da terra que excedeu os limites da genialidade transformadora de nossa sociedade.
As marcas de Thebas ainda nos dias de hoje
Na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, ainda se podem ver os arcos talhados por Tebas, bem como a fachada da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, no Largo de São Francisco.
Origem do apelido
O apelido de Joaquim Pinto de Oliveira teria origem no conto da mitologia grega da Esfinge (monstro alado com corpo de homem e cabeça de leão) de Tebas – cidade do antigo Egito – que devorava os viajantes que não conseguiam decifrar o enigma por ele lançado: “Que animal anda pela manhã sobre quatro patas, a tarde sobre duas e a noite sobre três?”. A reposta era o “homem”, que engatinha na infância, anda sobre as próprias pernas na vida adulta e sobre o apoio de uma bengala na velhice. Ao desafio lançado: Decifra-me ou Devoro-te, apenas Édipo acertou a charada, causando a morte da Esfinge. Assim, para os cultos do século 18, o apelido do escravo santista remete à agudeza e à perspicácia do engenhoso thebano que decifrou o enigma.
Texto originalmente publicado no blog Memória Santista, de Sérgio Willians