Santos, 24 de dezembro de 1591. Os habitantes da pequena vila portuária estavam sobressaltados, aterrorizados diante da sanha e da crueldade externada pelos famigerados piratas ingleses liderados por Cook e Cavendish no início daquela agressão infame. Os invasores, tomados por um espírito de ódio e rancor, haviam desembarcado nas proximidades do Outeiro de Santa Catarina após derrubarem as últimas resistências formadas junto à paliçada existente ao lado da Casa do Conselho. Postados em terra, os agressores não titubearam antes de iniciarem sua desprezível pilhagem, roubando, destruindo, matando animais e alguns dos bravos defensores que ali ficaram para protegerem suas famílias,
Enquanto as últimas defesas buscavam resistir aos quase 300 cruéis desembarcados das galés patrocinadas pela insensível Rainha Elizabeth, um grupo de colonos formados por mulheres, crianças e idosos, era conduzido pelo jovem filho do falecido mestre Bartolomeu, o Ferreiro, figura bem quista por todos e que havia chegado à região com a armada de Martim Afonso de Souza, em 1532. Bartolomeu filho era detentor de um segredo que o pai havia lhe confiado antes da morte e que só deveria ser revelado quando de uma necessidade extrema como aquela. Ele tinha ciência de como fugir e se esconder com segurança absoluta. Pelo menos duas décadas antes, seu pai havia descoberto, nas encostas do Morro de São Jerônimo (atual Monte Serrat), a entrada de uma caverna, que viria a se revelar algo extraordinário, tão extenso e ramificado era o conjunto de caminhos subterrâneos, que levava a pontos de vários outros morros, incluindo-se o Tachinho (atual Nova Cintra).
Nesta Santos “debaixo da terra”, o grupo de colonos se manteve à salvo da invasão, que durou mais de um mês. Todos ficaram gratos a Bartolomeu filho e à memória do velho ferreiro da vila que, além da descoberta, havia provido as cavernas de algumas comodidades, como bancos entalhados na pedra. Os anos, as décadas e os séculos se passaram, e os túneis do velho Bartolomeu, o Ferreiro, lenda ou não, acabaram caindo no esquecimento da maior parte dos santistas, até que algo inusitado aconteceu mais de 330 anos depois.
Tragédia revela velho refúgio colonial
Santos, março de 1928. O engenheiro-chefe da Prefeitura de Santos, Antônio Gomide Ribeiros dos Santos (que viria a se tornar prefeito da cidade por três ocasiões: abril/35 a agosto/36; janeiro/38 a julho/38 e julho/41 a agosto/45), coordenava o duro trabalho de consolidação das encostas desbarrancadas do Monte Serrat, tragédia que vitimara 81 pessoas entre homens, mulheres e crianças. Em meio ao desmonte dos perigosos taludes restantes, ainda instáveis, ele fora chamado por um grupo de operários inquietos. No meio da lama e terra despencada, eles encontraram uma pesada grade de ferro, aparentemente bastante antiga, haja vista seu péssimo estado em função da corrosão pela ferrugem. Não muito distante do ponto onde foi achada, os homens viram a entrada de algo que parecia ser uma velha caverna. Os trabalhadores, curiosos com a descoberta, foram até a abertura da gruta e notaram que ela era bastante funda. Gomide ficou extasiado com a novidade. Cobrindo o rosto com um pano, o engenheiro decidiu entrar e o que viu o deixou abismado, assim como aos que o acompanhavam.
A menos de cinco metros da entrada estreita, havia uma espécie de salão, de cerca de oito por cinco metros, todo rodeado por uma enorme banqueta de pedra. Do outro lado, um outro túnel, extenso, por onde Gomide e alguns operários ainda penetraram por quase trinta metros. A excursão logo seria interrompida, por conta de algumas aves noturnas que, despertadas pela luz dos operários, esvoaçaram, assustando a todos. A presença dos animais fez com que eles percebessem que o local já se encontrava aberto antes mesmo do desbarrancamento e que só não era possível vê-lo em razão da existência da excessiva vegetação existente naquela encosta do Monte Serrat.
Dias depois da inusitada descoberta, Ribeiro dos Santos relatou o caso ao amigo historiador e professor Francisco Meira que, por sua vez, contou-lhe sobre uma antiga história que apontava a existência do lendário refúgio colonial de mestre Bartolomeu, abordada em trabalhos históricos realizados por velhos memorialistas, como Frei Gaspar da Madre de Deus.
No final das contas, por uma questão de segurança, parte da encosta norte do Monte Serrat acabou concretada, para garantir que não ocorresse mais tragédias como a de março de 1928. Na ocasião deste trabalho, a entrada da famosa caverna dos tempos de Braz Cubas foi novamente fechada, para cair novamente no esquecimento.
Outros túneis e entradas
Há um ditado que diz que “o que (ou quem) não é visto, não é lembrado”. Talvez, por isso, a existência desses míticos túneis tenha caído no esquecimento popular. Ainda na época da escravatura, dizia-se que alguns desses caminhos subterrâneos dos morros eram utilizados, segundo contos populares, por membros da comunidade quilombola do bairro do Jabaquara. Naquele trecho do morro havia uma outra entrada para ingressar na intrincada ramificação de cavernas santistas.
Além dos caminhos subterrâneos esculpidos (ou melhor dizendo, cavados) pela natureza, Santos possuía algumas outras rotas semelhantes, também esquecidas pelo tempo, mas que ainda insistem em existir bem debaixo dos nossos pés: são os túneis resultantes do processo de canalização dos antigos rios que cortavam a cidade, como o de Nossa Senhora do Desterro (Valongo), São Jerônimo (Centro), Itororó (Centro) e Dois Rios (Gonzaga). Este último, inclusive, foi redescoberto recentemente (em 2013), e até ganhou uma espécie de claraboia de contemplação, no coração do bairro, na quadra final da avenida Ana Costa.
O caso que ganhou mais notoriedade nestes tempos modernos foi o do túnel que ligaria o Mosteiro de São Bento à Igreja do Valongo, “redescoberto” em 2008 no quintal de uma marcenaria. Na época, o historiador Waldir Rueda (já falecido) e o arqueólogo Manoel Gonzalez constataram que ele tinha três metros de altura, abrigando facilmente qualquer pessoa, que poderia caminhar facilmente pelo local. Esse mesmo túnel, na verdade uma galeria subterrânea, já havia sido explorado nos anos 1960 e 1970, por operários da Sabesp e da Prefeitura. O misterioso caminho subterrâneo, ao contrário das lendas que diziam se tratar de um “canal de fuga” para os religiosos do São Bento ou de escravos fugidos nada mais era do que uma antiga obra de canalização do já mencionado rio de Nossa Senhora do Desterro.
Lendas ou fatos, verdades ou invencionices, o certo é que esta “Santos Subterrânea” existe de verdade, e certamente esconde segredos misteriosos bem debaixo de nossos pés!