Certa vez andando por um bairro LGBTQIA+ em Sidney, na Austrália, me deparei com uma bela casa grande que era um museu de celebração da memória do povo judeu. Resolvi entrar e ver como um museu judeu conta a historia de seu povo.
Foi uma experiência cinematográfica e repleta de afetos, mas uma instalação entre todas me marcou. Vi ao longe um amontoado de sapatos de crianças, com uma luz tênue, daquelas que acalenta nosso olhar e nos atrai para estar perto.
Era uma sala não muito grande, mas que trazia a sutil existência da eternidade no vazio, brincando com o invisível para afetar o espírito observador dos visitantes. As crianças donas daqueles sapatinhos desapareceram durante o Holocausto, foram mais de 1 milhão e meio de crianças judias, lembradas numa obra da escultora israelita Elza Pollak, intitulada de “Tudo o que restou”.
Todo o museu trabalha com essa sensação de presença e falta, já que é na falta que se instaura o desejo. Assim também é a linguagem e a estética do cinema, que traz ao espectador a vontade de ver além daquilo que lhe falta completar, que traz a dimensão da arte que é o sentir, um sentir de forma elaborada para crescer como humano.
Ali naquela penumbra, pude perceber um pouco da dor da ausência do corpo como morto. Assim como na pandemia da Covid-19 em 2020, muitos não puderam velar seus entes queridos na Alemanha nazista. Lembro que fui arremessado de lá diretamente para a baía de Santos, cidade porto que nunca me deixa, mesmo quando do outro lado do mundo.
Respirei fundo e com uma sensação de injustiça no peito, pensei nos milhares de homens, mulheres e crianças negras que morreram, em 300 anos de escravidão brasileira, atravessando o oceano Atlântico, em navios negreiros, para servir de escravos aos Barões do Café, que hoje dão nome a muitas ruas e avenidas na cidade praiana.
Ao ficar e meditar um pouco mais naquela sala, tentei observar o vazio, que agora dialogava com os meus ancestrais. Veio fortemente uma questão: Como a cidade de Santos que abrigou e foi passagem de tantos povos negros, não tem um único museu que traga a gigantesca história do povo negro?
Esses sapatinhos poderiam ser de meninas negras encontradas no fundo do Atlântico, colocados numa instalação de um grande, criativo e movimentado Museu Afro Brasileiro de Santos, cidade que enriqueceu com o dinheiro do café, colhido com o suor e a dor de negros e de tantos outros imigrantes. Mas eram sapatinhos de meninas judias, assim como a pequena Clarice Lispector que chegou ao Brasil aos dois anos de idade, em 1922.
Ela, a grande escritora brasileira, nascida na Ucrânia de 1920, também fugiu dos “ismos”, mas devido a muita luta de seus pais ela sobreviveu para pisar em solo brasileiro com os sapatinhos de Clarice. Que sorte a nossa que seus sapatos não terminaram naquela instalação de Sidney, a menina tornou-se uma das maiores escritoras judias e brasileiras no mundo, e que vai virar até filme com a atriz Meryl Streep para celebrar o seu centenário de nascimento.
Deixo a você estas palavras e as imagens grávidas que compartilho no final do texto, para que juntos possamos lutar por todos que são massacrados pelos Estados de “Direito” vigentes. Vidas negras importam!
* Sugestão afetiva: Após a leitura, ouvir a música “Carne”, na voz de Elza Soares, autoria de Seu Jorge. Depois assistir a mini série “A Vida e a História de Madam C. J. Walker.
Um abraço oceânico de afetos!