Hoje é o dia que nos faz pensar no todo. Reconhecer a importância do espectro completo, de entender os impactos da origem e do destino. De perceber que todo fruto é parte de um processo de cultivo anterior
Estou falando do Dia Mundial da Alimentação, data criada em 1981 para lembrar a fundação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Parece mais uma data global para adicionar ao calendário comercial e pronto, mas para quem é do mercado de alimentação como eu, representa um marco de reflexão sobre o universo da alimentação, da saúde e dos processos envolvidos em toda a cadeia de produção e consumo.
Hoje quero destacar não somente o tema puro de 2020, “Cresça, alimente, sustente. Juntos”, onde lança um apelo à solidariedade global, para ajudar as pessoas mais vulneráveis a se recuperar e tornar os sistemas alimentares mais sustentáveis, fortes e resilientes. Quero destacar também a importância dos profissionais de restauração (especialmente de restaurantes) no processo de transformação alimentar. E levantar a difícil discussão sobre o que se deve colocar nos cardápios, considerando o balanço da nutrição, de mercado e do sabor.
É sempre muito difícil combinar essas três áreas que exploram características tão diversas, e muito específicas na medida em que são desenvolvidas. Também sempre temos preconceito ao integrar competências, aparentemente não associadas, no dia-a-dia de um pensamento para a criação de cardápios. Mas por que temos dificuldade em unir sabores, rentabilidade, nutrição e a conexão com a origem dos alimentos? Cardápios deveriam expressar os padrões de suas receitas ou de um conjunto de decisões que fortalecem um contexto? Dependendo da resposta, talvez o dia de hoje possa te fazer refletir mais sobre o impacto das escolhas que nós, profissionais de restaurantes, temos na alimentação da sociedade.
Criar cardápios saborosos é uma habilidade apaixonante da gastronomia em todas as suas formas de expressão cultural, técnica e experimental/científica. Deixa qualquer pessoa derretida com suas combinações sensoriais harmoniosas por meio de ingredientes e processos cuidadosamente selecionados.
Por outro lado, tornar cardápios rentáveis pode fazer com que profissionais ansiosos simplifiquem etapas e transformem ingredientes naturais em sintéticos, processos artesanais em ultraprocessados ou substituam alimentos essenciais por componentes químicos genéricos. E, muito certamente, essas decisões resultarão em produtos com muito mais perdas do que valores.
Em outro plano, criar receitas nutricionalmente balanceadas, que correspondam a todas às demandas do corpo humano, traz desafios de composição de ingredientes nas receitas que muitas vezes podem destoar das culturas sociais ou, no pior caso, sacrificar a experiência de alimentação natural para a rotina de suplementação artificial.
Então, como identificar e resolver essa equação alimentar? No meu caso, hoje é sempre o dia de refletir no que estou fazendo como pessoa, profissional e ativista da alimentação. Primeiro tento visualizar o que estou realmente fazendo que traz valor para o sistema, ou de outra forma, quais sementes estou plantando agora para, em breve, colher frutos desenvolvidos de alto valor agregado? E quais processos devo manejar para otimizar as etapas e garantir que o resultado seja o mais natural possível?
Depois, busco visualizar quais são as tendências mundiais para resolver problemas de diferentes proporções. Do que é mais expostos por grandes organizações como a ONU a problemas locais, da minha cidade, talvez do meu próprio hábito de consumo pessoal. E nesse conjunto de problema-solução, tento criar um caminho do meio que atenda ao meu momento profissionais, enquanto soluções externas são incorporadas, oriundas de políticas públicas, organizações privadas ou mesmo colegas/amigos profissionais que estão engajados na transformação do sistema.
Sim, a solução para os diferentes problemas é coletiva, plural, assíncrona, constante, inter-relacionada e, para mim, 100% voltada para o todo. Então, o dia de hoje, para os profissionais de alimentação, é para ser lembrado como um alerta para o que é proposto ao mercado, o que é transformado para o mercado e para o que é inserido no sistema como solução-semente (ou objetivo-fruto) de um movimento ininterrupto da alimentação.
Pense bem no que você vai comer hoje! 🙂
Foto: Farzad Mohsenvand