A minha cidade, Santos, no litoral de São Paulo, tem muitas particularidades, a maioria das quais, os santistas se orgulham. Ainda que algumas delas não sejam entendidas nem mesmo por nós, ai de quem ousar falar mal. Só nós podemos.
De gírias a comportamentos, incluindo alguns bem provincianos que em nada combinam com uma cidade tão vanguardista como Santos, tem coisas que definem bem o ‘santista way of life’.
A começar pelo pedido mais habitual nas padarias (ou padocas), que em Santos se espalham aos montes por toda a cidade: “duas médias e dois carás, por favor”. A padaria é uma instituição que funciona bem em Santos. As médias e os carás também. Apesar da concorrência desleal de uma tal rede mexicana de conveniências que se multiplica pelas esquinas (literalmente) da cidade.
Média, por aqui — e somente por aqui — é o pão francês de boa parte do Brasil. Ou o pão de sal de Minas Gerais. Ou o cacetinho dos gaúchos, que eu prefiro, diga-se de passagem. Curioso é que o pão francês é coisa brazuca e não existe na França, já que o pão de cada dia dos franceses é a baguete. Mas isso é outro papo.
Também não vou me aprofundar aqui nas questões que levaram os santistas a batizarem o tal pão francês do Brasil de média, pois eu nem saberia explicar. Meu papo aqui é sobre “o cará”, o pão de cará. Coisa muito nossa.
Há quem ouse dizer que o nosso pãozinho de cará é o pão de leite do resto do Brasil. Uma ova! Pão de cará é pão de cará. A questão aqui é que, assim como o pão francês do Brasil não foi inventado na França, o nosso pão de cará não tem cará na receita. Não mais.
Sim, cará, o tubérculo, já esteve entre os ingredientes desse pãozinho macio e levemente adocicado. Pelo menos, há quem defenda que sim. Algumas teorias especulam que após a Primeira Guerra, o trigo, que era importado e desembarcava dos navios no porto santista, encarecia a produção de pães, então os padeiros daqui começaram a incluir tubérculos nas receitas, para baratear. Um deles, o cará, deixava os pães mais macios e docinhos.
Há quem diga, no entanto, que a receita nunca levou cará e que o nome do pão se dá pelo formato e cor dessa iguaria tão santista. Até faz sentido, comparando lado a lado o tubérculo e o pão. Independentemente de qual versão é a correta, o fato é que hoje há padeiros fazendo pão de cará com cará por aqui, mas eles são os diferentões.
O pão de cará que todo mundo come e a única versão que a maioria dos santistas conhece não tem cará. E, honestamente, acho que não faz falta e nem tem mais sentido, com tamanha autonomia brasileira na produção de farinhas (inclusive, está no Porto de Santos o maior moinho de trigo da América Latina).
Ao que tudo indica, o pão de cará foi incluído na merenda das escolas municipais nos idos de 1960, mas já sem o cará. Ali ele começou a povoar as mesas santistas e não saiu nunca mais. Em 1980, o setor da panificação passou a considerar nosso cacetinho doce um pão especial e, com isso, claro, o cará ficou mais caro que a média.
Em 2022, o pão de cará subiu de nível: virou patrimônio imaterial e cultural santista e ganhou o mesmo status que iguarias como o bolo de rolo, o pão de queijo e o acarajé. A diferença é que o bolo pernambucano é mesmo enrolado, o pão de queijo mineiro leva queijo e o acarajé (do iorubá, àkàrà, que significa bola de fogo) desce mesmo em chamas. Já o nosso cará…
Renomados chefs e restaurantes santistas resgataram o passado nebuloso desse pãozinho e ‘trouxeram o tubérculo de volta’ para a receita. Criações bacanudas como o shrimp roll, um sanduíche de pão de cará com camarões e maionese temperada, do chef Dario Costa, ou uma versão do english pudding, com pão de cará, do chef Franklin Bin, eleita por Henrique Fogaça como a melhor sobremesa da história do reality culinário MasterChef, elevaram ainda mais a autoestima do santista gourmet.
E tem hamburgueria de sucesso, com DNA santista, também usando o pão de cará em seus famosos burgers, e uma manufatura queridinha na cidade com fornadas diárias de pães de cará. Com cará.
Recentemente, o sindicato da categoria lançou a primeira edição do Festival Sanducará, estimulando as padocas de Santos e região a criarem sanduíches autorais usando o nosso carazinho. Vale dizer que as padarias das cidades vizinhas, na Baixada Santista, também vendem pão de cará a rodo. Há boatos de que nosso cacetinho escuro e melado já chegou até no Rio de Janeiro. Pão de Açúcar que se cuide.