Estou gravando um quadro para o Youtube da Revista Nove chamado Toque de Mestre, em que eu me sento para bater papo com alguns chefs de Santos sobre comida e afeto.
Antes da conversa, gravamos eles preparando o prato na cozinha do restaurante e então seguimos para o salão para papear em torno da comida.
Tem sido uma experiência interessante, principalmente porque depois eu me acabo em toda essa comida boa. Mas, falando sério, com a meia dúzia de chefs com os quais já me sentei – vem muito mais por aí – é possível encontrar um fio condutor que define a comida afetiva: a simplicidade.
A técnica é importante na cozinha, claro, sobretudo nas cozinhas da alta gastronomia. Não quero aqui, de jeito nenhum, invalidar os anos de estudos e práticas, testes e mais testes de pratos e noites insones que formam os grandes cozinheiros e cozinheiras.
Mas é o simples que abraça a alma. A comida com afeto alimenta mais que sacia, ela restaura – e, aliás, restaurant, em francês, é justamente ‘aquilo que restaura’. E comida simples não é comida sem graça, ao contrário, cozinhar com simplicidade é encontrar harmonia em poucos ingredientes que, juntos no preparo, contam uma história.
É isso que busco com o Toque de Mestre: provocar os chefs a buscarem as mais queridas memórias e convertê-las em um prato com repertório, que resgate suas lembranças afetivas e, com isso, leve ao comensal um prato restaurador.
No universo está tudo interligado, tudo é energia, desde as ervas e o tomate, que trazem as forças telúricas (da terra) ou os peixes, com toda a riqueza da água, até o calor das mãos e o sentimento que se emana durante o preparo. A presença da ancestralidade na sabedoria de quem cozinha a comida, a leveza de uma equipe que trabalha em harmonia e o sorriso de quem leva o prato à mesa, tudo isso transforma a comida.
É por isso que a experiência do comer é diferente de um lugar para o outro, de um dia para o outro. Não tem a ver somente com técnica ou a competência do chef. O mesmo punhado de salsinha na mesma receita pode causar percepções diferentes, conforme todo o repertório.
E quando alguém prepara um prato afetivo, que reaviva memórias felizes, toda aquela energia chega à comida, potencializa sabores e aromas e cria ali uma aura feliz e contagiante. É isso que faz uma simples massa com manteiga, alho e queijo valerem muito mais que um prato de três cifras. Não é poesia e nem é romantizar a cozinha, ao contrário, é trazer leveza para esse pesado ambiente que são os bastidores de restaurantes.
Porque, afinal, memórias boas todos nós colecionamos. Inclusive daquela mistura que a mãe preparava na infância, com os poucos insumos disponíveis, e que, ‘por mágica’ (lê-se amor) se convertia em um ensopado delicioso e restaurador ou do macarrão com três ingredientes que reunia a família à mesa.
Aliás, nessas minhas andanças pelas cozinhas, a maioria dos chefs tem apostado em pratos com poucos ingredientes e muita história. É claro que a procedência dos insumos conta e muito: uma boa manteiga, um queijo de qualidade e uma erva sem agrotóxico tornam a experiência não só afetiva, mas também saudável.
Todos os chefs com os quais conversei até agora tiveram o despertar para a cozinha em casa, com mães, tias, avós e bisavós. Se apaixonaram pela arte de cozinhar comendo em casa, a comida de afeto, de restauro e, muitas vezes, na escassez. Porque, de novo, comida simples está longe de significar comida sem graça.
Curiosamente, nenhum deles se encantou pela gastronomia comendo um prato estrelado ou nas aulas de mise en place na faculdade. Tudo isso, claro, soma-se ao repertório, cria referências e ajuda a melhorar as técnicas.
Mas a paixão mesmo, o gosto pela comida, por alimentar corpos e almas, vem lá de trás, e tem, em comum, uma dose generosa de afeto.