Luiz Gama e o movimento abolicionista em Santos

Por Sergio Willians | Memória Santista

Santos, julho de 1869. O advogado Luiz Gama, um negro autodidata que se tornaria décadas mais tarde um autêntico herói nacional por seu ativismo abolicionista no século 19, adentrava decidido no Fórum de Santos, situado nas dependências da Casa de Câmara e Cadeia (o prédio da Praça dos Andradas, conhecido popularmente como Cadeia Velha).

Ele trazia em mãos uma petição, que redigira de próprio punho e assinara, questionando o juiz da comarca acerca de um processo de litígio sobre o inventário do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto, falecido no ano anterior (5 de abril de 1868). Gama exigia saber sobre o destino dos 217 escravos que o rico empresário mantinha em suas propriedades, trabalhando em fazendas, armazéns e casas comerciais localizadas em Santos, na capital bandeirante e no interior paulista.

O movimento audacioso de Gama se dera a partir da leitura de uma nota publicada na imprensa, que dava conta do imbróglio criado entre a família de Ferreira Netto; o testamenteiro, Luís Antônio da Silva Guimarães e um dos ex-sócios do comendador, Antônio de Freitas Guimarães, pelos bens do falecido empresário, avaliados em três mil contos de réis (algo equivalente a R$ 400 milhões nos dias atuais). A disputa judicial ganhou corpo na mídia e ficou conhecida como a “Questão Netto”.

Luiz Gama havia tomado conhecimento da vontade do famoso comendador, lavrada em testamento, também através dos jornais da época. No instrumento jurídico, Ferreira Netto manifestara um desejo bastante comum entre os grandes proprietários de escravos da segunda metade do Século 19: o de libertar, após a morte, todos os cativos de sua propriedade. Era o que chamavam de “alforria post mortem“, visto por muitos historiadores como uma espécie de “redenção moral e de consciência”. De certa forma, era algo que deveria soar como um arrependimento perante o juízo de Deus.

Negro e pobre, Luiz Gama, nascido em Salvador (BA), era um ex-escravo (vendido, aos dez anos de idade, por seu próprio pai, um homem branco, em pagamento de dívidas), aprendeu a arte do Direito na prática, trabalhando na polícia paulista e frequentando a biblioteca particular do seu chefe, Furtado de Mendonça, que o protegia. Compreendendo a legislação brasileira, a usou contra os senhores de escravos, sempre com êxito. Ao longo da carreira, obteve a liberdade de centenas de cativos por meio judicial. Em muitas dessas causas não cobrou um centavo sequer. O caso da Comarca de Santos, a “Questão Netto”, é considerado o maior da história do Brasil, com a libertação de 217 negros escravizados (embora 130 tenham gozado deste privilégio). Depois desse caso, em números, o maior da lista de Gama registrou a alforria de 18 escravos.

* Texto e fotos: Portal Memória Santista

Entretanto, a “vontade” do falecido não fora cumprida e seus escravos continuavam cativos à serviço dos herdeiros e ex-sócios. Tal desfecho também não era incomum naqueles tempos. Segundo levantamento histórico em inventários “post mortem”, feito nos arquivos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no período de 1850 a 1875, 65% dos escravos continuavam cativos, contra 31% que obtinham a alforria.

Ao saber do impasse e da situação dos 217 escravos, ainda não alforriados pelo direito garantido que tinham, Gama arregaçou as mangas e foi para a briga. Em sua petição ele foi hábil o suficiente para não se colocar no meio da guerra travada entre os interessados pelo espólio deixado por Ferreira Netto. Ele se apresentou apenas com um cidadão que exigia fazer valer o desejo da “alforria post mortem” pontuada no testamento. Entre idas e vindas dentro do processo, Gama acabou sendo nomeado pelo juiz como “curador” dos interesses do grupo de escravos e, a partir daí, construiu uma peça jurídica impecável, que não tratava da “libertação” dos cativos do falecido comendador, coisa que o advogado já tinha como certa, em função do testamento, mas atentava para o crime da “redução de uma pessoa livre à condição de escravizado”, o que não era permitido pela lei. Ou seja, ele inverteu o jogo, mostrando ao juiz que a família do comendador estava cometendo um crime ao escravizar pessoas que já eram declaradas livres.

Ato contínuo, Gama mandou fazer um levantamento sobre cada um dos 217 escravizados, cadastrando seus nomes, idades, naturalidades e histórias de vida. Ao final do trabalho, ele verificou que havia gente de Angola, Moçambique, Congo, entre outras nações africanas.

Contra-ataque com um abolicionista

Os herdeiros do comendador, acuados em relação ao movimento de Luiz Gama, decidiram impedir seu êxito contratando um renomado advogado para representá-los no tribunal: José Bonifácio, conhecido como “o Moço”, neto do patriarca da Independência, seu “xará” José Bonifácio de Andrada e Silva. Ao contrário de Gama, que foi autodidata em Direito, Bonifácio, “o Moço”, fora um brilhante aluno da Faculdade do Largo São Francisco. Em tese, era um embate entre “Davi e Golias”.

A ideia dos herdeiros, contudo, mais do que um advogado famoso, era ter a seu favor um defensor que tivesse reconhecida relação com o movimento abolicionista, o que, em tese, ofuscaria a visão sobre decisões judiciais meramente escravocratas. Mas isso acabou não funcionando, apesar de Bonifácio ter iniciado sua peça argumentativa em contestação ao trecho do testamento escrevendo no processo “Sem opor-me à liberdade, mas…”, seguido de argumentos que notadamente jogariam sua imagem de abolicionista na lata do lixo.

Apesar da competência jurídica, Bonifácio perdeu para Gama na Comarca de Santos. O juiz dera ganho de causa ao advogado negro, mandando libertar, então, os 217 escravos. Porém, o defensor dos herdeiros de Ferreira Netto apelou para outras instâncias no interior de São Paulo, evidenciando o uso de manobras protelatórias que só prolongariam o processo, adiando ainda mais a libertação das vítimas.

Desfecho tardio, mas vitorioso

Somente em 1872, é que Gama pode, finalmente, comemorar, embora parcialmente, a vitória, quando o julgamento do mérito chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, a última instância, no Rio de Janeiro. Naquela corte, Gama foi representado por um amigo, o advogado Saldanha Marinho, pois ela não aceitava a atuação do advogado negro fora de São Paulo. O abolicionista, no entanto, escreveu a sustentação final, apresentada por Marinho, e acompanhou o julgamento no Palácio da Justiça.

Os ministros do STJ concordaram com a tese de Gama, porém determinaram que fosse cumprido um prazo de doze anos, contados a partir da feitura do testamento (lavrado em 1866), para a libertação dos 217 escravos. Ou seja, os cativos tiveram que prestar serviços forçados para os herdeiros do comendador até 1878, quando finalmente foram libertados.

A liberdade condicional foi tida como uma derrota para Gama, mas sua vitória no mérito da causa, uma alforria coletiva, daquela dimensão, jamais tinha ocorrido no país. Foi a maior da história e nenhuma outra suplantou-a. Tal conquista, no entanto, não ganhou eco na grande imprensa, que era muito ligada aos fazendeiros escravocratas. Eles temiam que a repercussão da história pudesse gerar novos processos.

Em 1878, fim do prazo estabelecido pelo STJ, um jornal paulista chegou a noticiar a grande festa que ocorrera em comemoração pela libertação dos cativos do comendador Ferreira Netto. Porém, dos 217 homens e mulheres libertados por Gama, somente 130 permaneciam vivos para gozar a liberdade conquistada.

Esta incrível história estava esquecida no tempo e foi resgatada graças ao hercúleo trabalho do historiador Bruno Rodrigues de Lima, que se debruçou sobre mais de 1000 páginas do processo original, todo manuscrito, da “Questão Netto”. Trazido à luz em maio de 2021, não poderia escapar dos nossos olhares, ratificando a cidade de Santos como um celeiro de fatos históricos sem precedentes.

Manoel Joaquim Ferreira Netto

Considerado um dos homens mais riscos do Império, era donos de inúmeras propriedades no Estado de São Paulo. Em Santos, foi o responsável pela construção da Casa da Frontaria Azulejada e dos Casarões Gêmeos do Valongo (atual Museu Pelé).

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