Ainda nem eram oito horas quando ela entrou no prédio e deu boa noite ao porteiro. Não era o boa noite de sempre, logo notou Isaías.
Não foi um dia fácil, aliás, esse era um daqueles dias que qualquer bípede – o que inclui os gorilas e chimpanzés – desejariam riscar do calendário.
Entrou em casa, deixou o par de scarpin na porta, como de costume – mais tarde o recolheria, não fosse o nocaute que levou da garrafa de Malbec argentino – e foi servir a comida do gato. Depois de um cafuné na cabeça do bichano foi para o banho. Não era o cafuné de sempre, logo notou Charlie. Não foi um dia fácil, aliás, esse era um daqueles dias que nem os calendários faziam questão de exibir.
Ao sair do banho, se deparou com a geladeira e a despensa vazias, então precisou apelar ao delivery. Pelo menos uma vez na semana, normalmente às sextas, se dava o direito a uma brotinho de marguerita. Mas era terça e ela não havia pedido a pizza de sempre, notou o atendente. Não foi um dia fácil, aliás, ela teve a impressão de que nem a pizza estava boa. O vinho, avinagrado; Charlie meloso demais e no Spotify não havia uma música que prestasse. Nenhuma, diante das dezenas de playlists que ela mesmo cultivava com todo cuidado.
Não tinha sido um dia fácil!
À meia-luz, ela, a garrafa de Malbec avinagrado, as bordas que sobraram da brotinho sem graça e Charlie, o gato meloso, compunham um cenário deprimente de ‘fossa no Leblon’ – embora estivessem no Marapé – ao som também meloso de Stacey Kent.
No fundo, ela sabia qual era o problema e na última taça resolveu confessar a Charlie. Mas, como ele já tinha se recolhido ao quarto, desabafou com Janinne, a samambaia.
– Sabe, Janinne, talvez eu esteja sendo imatura e ingrata, mas hoje não foi um dia fácil.
– O que houve? – perguntou a samambaia
Ela já não tinha muitas condições de explicar, mas tentou, por considerarão à companheira de músicas ruins no Spotify.
– É como se nada de novo tivesse acontecido hoje. Tenho um bom emprego, um apartamento confortável, amigos, estou solteira por opção no momento, faço viagens todos os anos e sou livre. Mas não tem sido fácil. Hoje não foi um dia fácil.
– Entendo, lamentou Janinne, com as folhas meio murchas.
– Espere até você se ver obrigada a ficar em casa todos os dias, olhando a vida lá fora pela janela – comentou o gato, enquanto passava pela sala para comer a ração de sempre no pote vermelho de todo dia.
Mas era tarde, ela não ouviu, derrotada pelo Malbec.