Sabe-se lá porque a cidade tem o costume de jogar para suas regiões mais detonadas os eventos culturais que pretende sediar.
Deve ser para tentar recuperar a beleza distante de sua história, que brilha sufocada debaixo de uma camada de fuligem que dia após dia a engole. Foi no Centro Histórico de Santos que ocorreu o Santos Café, suas ruas geladas de um inverno repentino perfumadas com o cheiro doce de cafés exóticos.
Não me lembrava com exatidão onde ficavam os Arcos do Valongo. Desci do carro preocupado mas nem tanto, pois já sabia que para achar o caminho de qualquer lugar é só usar os diferentes sentidos de que dispomos fundidos todos num só intuito (e a informação de outros transeuntes, quando nós mesmos não bastamos). Perguntei a um guarda municipal onde ficavam os Arcos, e ele me explicou:
“você segue esse boulevard até o final e pega a direita. Daí segue reto um pouco até passar o Museu Pelé e chegou – é atrás do museu Pelé”.
Prontamente atendi à ordem do oficial, e logo cheguei no destino referido – mas não sem antes ter de dar a volta numa multidão que se aglomerava bem no final do tal boulevard, em frente de um palco que lá estava montado, onde uma banda se apresentava. Quanto mais nos aproximávamos dos Arcos, mais tínhamos certeza de onde brotava o perfume que a cidade usaria naquela noite, e podíamos enfim formar a imagem do que seria o pôr-do-sol daquele fim de tarde: cheio de vapores, em tons de terra.
Uma vez lá dentro, passeamos por todas as mesas de exposição dos artesãos.
Algumas traziam artigos comuns, outras nem tanto – mas o que chamava a atenção mesmo eram os stands de degustação de café, onde pela bagatela de uns poucos minutos de fila se poderia experimentar bebidas quentes que diziam ser café mas não pareciam. Sabe, estou acostumado com os cafés vendidos nos mercados de bairro, torrados até a exumação de sua suavidade. Quando te apresentam algo diferente que é até melhor do que aquilo a que se está habituado, você fica confuso. O maior problema dessa diferença toda de qualidade no consumo é que os sentidos, uma vez embrutecidos pelo pior, te faz pensar das duas, uma, acera do produto que te apresentam como sendo o mais refinado, o melhor, o correto: ou é mentira, ou é frescura. Mas na realidade não é uma coisa nem outra. É técnica. Não acreditei quando ouvi a explicação do complexo método de coagem executado pelo barista de um dos estandes: “estou colocando vinte e uma gramas de café”, dizia, enquanto derramava o pó no coador.
“Tenho algumas variáveis para controlar no ato da coagem: o tempo, a quantidade de pó, o tipo de coador, a temperatura da água, o modo como a derramo – mas existem algumas técnicas a mais que podem deixar seu café ainda melhor: você pode dar uma balançada aqui (e balançou o recipiente do coador, depois bateu sua base na boca da leiteira de vidro onde escorria a bebida) pra assentar melhor o pó que se encontra no fundo; você também pode escaldar o coador antes de jogar o pó, porque assim se tira a química advinda da tintura branca que o colore”
– e mais um infinito de pequenas recomendações, demonstradas por ele com seriedade máxima, como se a vida do mundo inteiro dependesse da qualidade daquele procedimento. Quando chegou a hora da prova eu estava mais confuso que o Suplicy no show do Racionais. Finalmente eu provaria o conteúdo daquela ciência medieval e comprovaria a importância de uma coagem minuciosa.
Dei a primeira golada. Maravilhoso!
Dei a segunda. Ainda maravilhoso. Dei a terceira. Muito bom – mas não se parece nem um pouco com o café Caboclo torradão do mercado. Não há ação esperada diante dessa revelação que não seja a rendição honesta: descobri que coar um café bom, como todas as artes, necessita de um tempo inicial de designorantização. Fazer o quê? É preciso aceitar que aquele cafezinho que mamãe fazia nos tempos de adolescente era, no melhor dos julgamentos, um torrão cheirento que fazia uma água preta cuja função era unicamente acordar a cabeça.
No final das contas me rendi duplamente: eu e minha namorada trouxemos para casa duzentas e cinquenta gramas do tal café dos deuses. O único detalhe é que ficou menos maravilhoso em nossas xícaras: acho que não prestamos muita atenção na aula do barista!
* Iury Cascaes é escritor, filósofo e músico